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O necessário reconhecimento do direito fundamental à raspagem de dados públicos

LAURA MENDES AMANDO DE BARROS* 26 SETEMBRO 2023 | 5min de leitura


Uma das mais recentes – e estruturais – celeumas envolvendo a Lei Geral de Proteção de Dados guarda relação com a possibilidade da raspagem de dados públicos.


Muito já se discutiu sobre a utilização dessa técnica quanto aos dados espontaneamente publicizados pelos titulares nas redes sociais – conduta invariavelmente vedada pelas plataformas, encarregadas de coibi-la como um risco inerente à sua atuação (vide artigos 6º, VII e VIII e 46 da Lei).


Tal situação foge ao escopo do presente, focado nos dados disponibilizados pela Administração como efetivação do seu dever fundamental de transparência e garantia de acesso a dados e informações, conforme artigos 5º, XIV, XXXIII, XXXIV, LXXII e 216, da CF.


Os preceitos são disciplinados pelos artigos 8º, §3º, III da Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação); 25, III, da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet); e 29, 1º, II e IV da Lei 14.129/21 (Lei do Governo Digital), todos expressos quanto ao acesso automatizado aos sites do poder público, assegurado o seu uso irrestrito.


A celeuma foi incendiada pela decisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados proferida em julho/23, que aplicou a primeira (e até o momento única) sanção por ofensa à LGPD.


Na hipótese, o ato ilegal correspondia à coleta de dados de cidadãos disponibilizados em plataformas oficiais, com vistas à sua comercialização para disparo em massa de peças de campanha política.


O fato deu-se na cidade de Ubatuba, e efetivamente configurou ofensa aos artigos 7º, §§ 3º, 6º e 7º da LGPD e 5º, X e XII da CF – com imposição de multa de R$ 14.400,00 e advertência[1].


O problema surge com a argumentação desenvolvida pelo assessor da Presidência da ANPD e pelo coordenador geral de fiscalização da Autoridade – a qual, é bem verdade, não constou de nenhum documento do processo sancionatório -, de que a raspagem de dados públicos seria absoluta e conceitualmente ilegal[2].


Referida – e infundada – premissa é ofensiva aos princípios da transparência, soberania popular, democrático, e à lógica regente do sistema constitucional de controle.


Mantendo-se o foco na LGPD – fundamento invocado na decisão -, tem-se como preceitos basilares à utilização/coleta de dados a finalidade legítima, o interesse público e a boa fé - que, uma vez presentes, as autorizam independentemente de consentimento do titular.


Trata-se de disciplina legal da garantia, também fundamental, à proteção de dados pessoais (art. 5º, LXXIX da CF), que, como todos os direitos dessa categoria, deve ser interpretado a partir da ponderação, inclusive quanto ao de direito à informação e transparência.


Não existem direitos absolutos, de modo que a proteção à intimidade não pode ser invocada a justificar restrição de acesso a informações e dados públicos, de interesse público, e, mais que isso, condicionantes do exercício do controle social e do próprio aprimoramento da ação pública.


Claro que somente os dados imprescindíveis devem ser coletados (princípio da necessidade, artigo 6º, III da Lei) – mas não se pode admitir uma negativa universal, com comprometimento da engenharia constitucional de controle (não olvidemos que os órgãos de controle interno e externo lançam mão de ferramentas de inteligência artificial, com raspagem de dados, para o desempenho de suas precípuas atribuições).


Essa, aliás, uma das grandes razões de ser da obrigatória publicação nos Portais de Transparência em formato aberto e amigável...


A raspagem de dados (ou data scraping) igualmente viabiliza a análise do desempenho do governo, evolução/involuções sociais e diversos estudos necessários ao planejamento da ação pública.


Em muitas circunstâncias, é essencial o conhecimento – ainda que de forma anonimizada, ou pseudoanonimizada -, de dados pessoais sensíveis, como etnia/raça, sexo, comorbidades, idade, situação econômica...


Recordemo-nos do cenário trazido pela Covid-19, além dos estudos demográficos, o Censo escolar e outros, em que os impactos sobre os diferentes grupos da população é de fundamental mapeamento.


É claro que a disponibilização/acesso de tais informações deve observar uma rígida e responsável governança de dados, transparente quanto à metodologia e finalidade.


O pleno direito de acesso apresenta-se, nessa medida, como corolário da própria democracia, com seus inafastáveis pilares da representação e participação democrática, e exercício da accountability.


Há tempos vimos observando tentativas de instrumentalização da LGPD como fundamento universal para negativas de pedidos de acesso à informação e disponibilização de dados de interesse público.


O que torna a situação em comento mais acintosa é o fato de advir justamente da autoridade nacionalmente encarregada de equacionar a tão necessária interação entre LGPD, Lei de Acesso à Informação, Lei do Governo Digital e demais legislação sobre o tema.


Tamanho grau de miopia quanto à extensão do direito fundamental de acesso às informações públicas (que, justamente, não pertencem a nenhum órgão ou estrutura, sendo de interesse de toda a população, a quem a Constituição Federal garante, para além da soberania, o poder-dever de acompanhar e fiscalizar a ação pública), é no mínimo preocupante.


Precisamos resgatar as premissas de que a razão de ser maior do Estado é atender às demandas da sociedade, constitucionalmente empoderada a controlá-lo – missão essa inviabilizada pela negativa de acesso a informações e dados cuja transparência é constitucional e legalmente imposta, considerada a sua finalidade legítima.


Em tempos em que robôs e programas de inteligência artificial desempenham grande parte das interações com o cidadão/consumidor, alijá-los da possibilidade de auditar a ação pública de forma inteligente é covarde e desleal.


Evidente que desvios (tais como o sancionado na decisão em análise, em que a finalidade era comercial, e, portanto, ilegítima aos olhos da Lei) devem ser exemplarmente coibidos – mas jamais em prejuízo de um dos mais estruturantes direitos do cidadão quanto ao controle da ação pública, seu planejamento e engajamento para uma vida melhor.


*Laura Mendes Amando de Barros é doutora e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura; em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; e em Autoridades Locais e o Estado pela École Nationale d’Administrarions de Paris. Conselheira superiora do Instituto Não Aceito Corrupção e da Fiquem Sabendo. Procuradora e ex-controladora-geral do Município de São Paulo. Professora do Insper


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica


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