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O que a Americanas S/A nos ensina sobre governança e compliance?

Por Célia Lima Negrão*

25/01/2023 | 05h00


O rombo de 20 bilhões da Americanas tomou conta da mídia devido aos problemas contábeis descobertos no balanço financeiro da empresa. Em resumo, sabe-se das inconsistências nos lançamentos contábeis na conta de fornecedores, além de possível prática de insider trading, na medida em que houve venda das ações de executivos antes do escândalo, caracterizando possível informação privilegiada. Mas, o que tudo isso significa?

Os lançamentos contábeis em conta de fornecedores referiam-se aos valores pagos por instituições bancárias a fornecedores da Americanas que deveriam constar como dívida financeira da empresa, operação bastante comum no mercado. Sendo assim, grande parte do que está na conta fornecedores é dívida financeira com bancos, na ordem de 20 bilhões, maior do que o valor de mercado da Americanas que valia, antes do problema anunciado, cerca de R$ 10,82 bilhões, segundo fonte do G1.


É no mínimo curioso que tal valor fosse contabilizado de forma equivocada nos balanços, sem que qualquer agente da governança, auditores ou mesmo órgãos de fiscalização percebessem, o que abre um alerta para o setor varejista que utilizarem da mesma prática, situação que ensejaria uma crise sem precedentes em todo o setor.


Impossível não especular o que está por trás dos lançamentos inadequados, erro ou omissão deliberada, quem ganhou com isso e, principalmente, o fato de que não houve nenhuma menção das auditorias, interna e independente, durante todo o tempo.


Tudo isso só aconteceu a partir de decisões inertes às avaliações de riscos e de compliance que afetou o varejo brasileiro, com a perda de bilhões em valores financeiros e intangíveis, como a reputação de uma empresa de 87 anos de existência.


Sob o aspecto de governança, tais decisões não obedeceram os princípios de transparência, prestação de contas e responsabilidade que poderiam evitar tamanho descontrole contábil.


O princípio da transparência permite a disponibilização de informações às partes interessadas, não restringindo-se apenas ao desempenho econômico-financeiro, mas também de informações relevantes que norteiam à gestão e aspectos intangíveis.


Assim, os integrantes da governança corporativa, seus conselheiros e dirigentes, precisam observar em suas decisões a transparência e informar ao mercado as transações contempladas em seus balanços e situações que fogem ao padrão já estabelecido.


No que tange ao princípio da prestação de contas, no qual os agentes assumem integralmente as consequências de seus atos e omissões, atuando com diligência e responsabilidade, também houve clara violação na medida em que o problema foi camuflado durante anos, prejudicando todas as partes interessadas que não obtiveram as informações necessárias dispostas nos instrumentos de prestação de contas.


Quanto ao princípio da responsabilidade, os agentes da governança deixaram de zelar pela viabilidade econômico-financeira da empresa, ao invés de reduzir externalidades negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as perspectivas positivas, fizeram exatamente o contrário, levando a Americanas à uma crise financeira e reputacional sem precedentes.


O princípio da responsabilidade requer dos agentes da governança compromisso com um modelo de negócios que contemple perenidade e sustentabilidade, no curto, médio e longo prazo. A Americanas conseguiu vantagens durante um tempo, porém, a dissimulação contábil gerou impacto muito maior que afeta sua perenidade no mercado.


Apenas para exemplificar, a elaboração das demonstrações financeiras de uma empresa do porte da Americanas passa por um processo de construção detalhado, onde várias áreas participam e fornecem as informações, há a auditoria interna e independente que emitem pareceres, além de aprovações na diretoria e conselhos de administração e fiscal. É um processo sério, robusto, com etapas decisórias e diversos controles.


Percebe-se que mesmo a Americanas que possui estruturas internas robustas de controles, compliance, auditoria interna não conseguiu passar ilesa a tamanha dissimulação contábil.


Isto é algo realmente inexplicável, pois a legislação brasileira e, em especial, as normativas da Comissão de Valores Mobiliários - CVM são taxativas e rigorosas quanto às exigências dos controles internos relacionados à governança, compliance e gestão de risco nas demonstrações financeiras, além de relatórios com análises dos fatores de risco tanto internos como externos relativos aos resultados e operações da empresa.


Os agentes responsáveis por prezar pelo controle e integridade negligenciaram os controles previstos e ocasionaram inegável quebra na confiança, um abalo imensurável na reputação da empresa, o que evidencia que estruturas de compliance sozinhas não fazem diferença se não houver o compromisso de cada agente da governança com a integridade.


Enquanto houver mais discurso do que a intenção verdadeira de criação de uma cultura de compliance, os problemas continuarão e a proteção tão necessária ao negócio, missão de qualquer compliance que se preza, ficará em segundo plano.


À luz da ética e compliance é impossível ver o que acontece com a Americanas e não relembrar eventos emblemáticos da década de 90, onde foram descobertas alterações fraudulentas nos balanços financeiros de diversas empresas.


Como exemplo, cita-se o caso da Enron que houve alteração ilícita dos resultados das receitas nos balanços contábeis cujo o desfecho todos conhecem: quebra da Enron levando com ela a auditoria Arthur Andersen que foi fundamental para sustentar a fraude contábil. Será que estamos vivendo situação semelhante?

Se estamos vivendo tempos sombrios que remontam às grandes fraudes financeiras, deve-se aguardar as investigações da CVM, do Ministério Público e as investigações da própria Americanas.


Enquanto isso, as ações despencam, acionistas e a sociedade perdem: a Americanas possui mais de 40.000 mil empregados, mais de 100.000 mil investidores, está presente em todo o território nacional, com mais de 2.000 fornecedores diferentes. É um impacto sem precedentes em toda a cadeia de negócios e suprimentos.


Não se pode olvidar que a Americanas no quesito governança deixou a desejar, o que põe em risco todo o resto pelo simples fato de que a governança é a espinha dorsal de qualquer negócio, quando ela falha, todo o corpo é impactado com danos incalculáveis e imprevisíveis.


*Célia Lima Negrão, escritora, produtora de conteúdo digital de compliance e riscos e empregada pública dos Correios. Especialista em Governança e Compliance, Estratégia, Lei de Proteção deDados e Direito Trabalhista

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica


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