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Os desafios da transição: é hora de acertar o passo

Por Laura Mendes Amando de Barros*

06/01/2023 | 05h00


Passada (será??) a intensa agitação, polarização e insegurança do período eleitoral e final do mandato do anterior presidente, é hora de retomar a vida, a 'normalidade' e a atuação pública efetiva e concentrada na promoção de benefícios ao país.

Considerado o tumultuado momento de transição, em que um dos grandes desafios (talvez o maior) é a reconstrução de uma noção íntegra de país, sem rachas, guetos, exclusões e excluídos, digno de lembrança o trabalho de Michael Lewis intitulado "O quinto risco", em que analisa criticamente o período de transição entre os governos Barack Obama e Donald Trump nos Estados Unidos.


Dentre diversas lições, com interessantes exemplos do que repetir e do que nunca, jamais realizar, destaca o autor a importância da equipe que desembarca no governo tomar, de plano e com a maior brevidade possível, conhecimento de tudo o que se passa em todas as diversas pastas, setores e departamentos - para aí desenvolver, de forma minimamente responsável, as suas estratégias de ação para os próximos anos.


Chama atenção para os seríssimos riscos advindos de eventual subestimação desse período pelos agentes recém-investidos na função pública: no cenário norte americano, uma atitude irrefletida e sem base em evidências do então estreante presidente acarretou aos fazendeiros (reconhecidamente a sua principal base eleitoral) um prejuízo imediato de U$ 4,4 bilhões anuais em vendas para o exterior, segundo a American Farm Bureau Federation - tudo em decorrência da impetuosa (e desastrosa, e caprichosa) retirada do país da Parceria Transpacífico[1].


Essa é apenas uma ilustração das consequências potencialmente catastróficas de decisões impensadas ou, ainda que bastante refletidas, não partam de dados e informações confiáveis, em evidências construídas a partir de metodologia científica e confiável.


A obra evidencia os riscos e potencial danoso de uma transição mal feita, que não implique em profundo estudo e compreensão de todas as diversas áreas de atuação governamental, suas principais dificuldades, carências, desafios e - por que não - sucessos.


O cenário com o qual nos deparamos no Brasil é de certa forma oposto àquele retratado no livro: enquanto lá, entre as eleições de 2016 e a posse em 2017 havia uma profusão de dados, informações, estudos, relatórios e documentos voltados à apresentação, compreensão e aparelhamento do novo governo - todos solenemente ignorados por Trump e sua equipe -, vê-se aqui um verdadeiro apagão de dados, informações e registros.


Não obstante a alvissareira implementação de um gabinete de transição, com intensa participação popular (inclusive especialistas nas diversas áreas) e criação de grupos técnicos, o qual trabalhou desde a proclamação do resultado das eleições com vistas a mapear e compreender em que pé estamos enquanto país e políticas públicas, as informações e constatações levantadas até o momento (com extrema dificuldade) não são nada alentadoras.


Os 32 relatórios temáticos produzidos pelos grupos técnicos apresentados em 22 de dezembro de 2022 apontaram, dentre outros aspectos, intenso retrocesso nas áreas ambiental; de saúde pública (destaque para os indicadores vacinais, em queda brusca nos últimos quatro anos); violência contra a mulher; efetividade e respeitabilidade do Brasil no exterior; habitação popular e segurança alimentar.


Na área especifica da transparência pública, o relatório repercutiu as críticas e constatações levadas a efeito durante todo o período do governo anterior.


Realmente, a sociedade civil - à qual foi outorgada posição de destaque durante todo o processo inaugural de transição - já vinha atuando intensamente nesse particular, com o apontamento dos diversos abusos e desvios cometidos pelo governo recém-encerrado, especialmente nas áreas relacionadas à transparência, produção e gerenciamento de dados e participação social.


Foi a partir da sua atividade e mobilização que foram trazidos a escrutínio público, inclusive internacionalmente, a excrecência do orçamento secreto; o apagão de dados do Ministério da Saúde no início de 2022; a opacidade (democraticamente inadmissível) da tramitação dos projetos legislativos no Congresso Nacional; os riscos e incoerências do projeto de regulamentação do lobby (PL 4391/21), aprovado de forma açodada e sem debates ou envolvimento minimamente exigível da sociedade civil; restrição de mecanismos participativos, com o desmantelamento e comprometimento de conselhos; as reiteradas - e infundadas - ofensas à Lei de Acesso à Informação por órgãos oficiais, inclusive com instrumentalização da LGPD...


Com relação a esse último aspecto, análise levada a efeito pela Transparência Brasil em novembro de 2022 evidencia que vinte por cento dos pedidos de acesso à informação realizados a órgãos federais entre janeiro de 2021 e agosto de 2022 e classificados como 'atendidos' em verdade não forneceram as informações solicitadas - em mais um episódio de falseamento de dados e informações, de forma a distorcer a realidade[2].


Digno de registro também estudo levado a efeito pela Open Knowlodge Brasil[3] com relação à Infraestrutura Nacional de Dados Abertos - INDA, a qual, considerado o biênio 2021-2022, teve quase metade suas metas não alcançadas (apesar de diversas repactuações e extensões de prazo).


Foram quatro as ações (de dez) não implementadas, relacionadas a 16 das 35 originariamente previstas - e que portanto deverão ser incorporadas aos planos atinentes ao biênio 2023/2024. O próprio acesso às atas das reuniões do Comitê Gestor apresentou-se como um obstáculo por vezes intransponível.


Tal cenário evidencia o tamanho dos desafios a serem equacionados pelo governo que se inicia.


O seu diagnóstico e efetiva compreensão, conforme evidenciado na obra referida no início destas reflexões, condicionarão de forma absoluta o sucesso das medidas e políticas a serem implementadas pelo governo.


Inquestionável que a prévia experiência do presidente eleito na função tende a contribuir para o seu bom desempenho - mas as radicais alterações, de ordem legislativa, institucional, política e mesmo conceitual levadas a efeito nos últimos quatro anos repercutirão de forma marcante, devendo portanto ser objeto de atenta consideração e estudos.


Nesse ponto, o funcionalismo público - tão maltratado, subestimado e subvalorizado - terá papel fundamental (mais um): são esses servidores que mantém a memória dos órgãos, o histórico dos fatos e dados e, eventualmente, os caminhos para o levantamento das informações perdidas ou dissipadas.


Sem diagnóstico não há como planejar adequadamente; e, sem planejamento adequado, não se pode esperar uma execução minimamente eficiente e eficaz, capaz de atender aos anseios e necessidades do cidadão brasileiro.


Mais que isso: sem participação popular não há como se pretender a elaboração de políticas responsivas, legítimas e, em última análise, compatíveis com a Constituição Federal.


Começamos bem, com a cidadania em destaque...


Que 2023 marque o início de um bom quadriênio para todos os 214 milhões de brasileiros!!

[1] LEWIS, Michael. O quinto risco. LEITE, Cássio de Arantes (trad.). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019, p. 103.

*Laura Mendes Amando de Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora-geral do Município de São Paulo. Professora do Insper


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica



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