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Pauta ESG e escravidão moderna: desalinho no compliance e na governança

Por Jandaraci Araújo*

17/05/2023 | 05h00


Os mais recentes casos envolvendo "escravidão moderna" no Brasil, nos coloca de volta ao século XIX, no país que foi o penúltimo a abolir a escravidão de africanos, não é de se estranhar que há quem acredite que aniquilar direitos e desumanizar outras pessoas em prol do lucro, seja uma boa prática. De residências a fazendas, o problema é sistêmico, em 2022 o Ministério do Trabalho e da Segurança Social realizou o resgate de 2.575 trabalhadores em condições análogas à escravidão. No mundo são aproximadamente 50 milhões de pessoas sendo escravizadas, de acordo com o Relatório de Estimativas Globais da Escravidão Moderna. O conceito de escravatura moderna é frequentemente utilizado para descrever várias atividades de exploração: tráfico de seres humanos, trabalho forçado e escravo, servidão e casamento forçado.


O lugar comum da grave violação dos direitos humanos é a discriminação e o alto grau de vulnerabilidade das vítimas. Especificamente no Brasil, de acordo com o Ministério do Trabalho, 7% eram analfabetos, 83% são negros (pretos/pardos), 58% são nordestinos. Uma em cada quatro vítimas de trabalho escravo são crianças. As mulheres correspondem a 7% dos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão, sendo que 6 em cada 10 são negras. Apenas no primeiro trimestre de 2023, mais de 900 pessoas foram resgatadas, o setor agrícola perpetua a história e os estados de Goiás, Rio Grande do Sul e Minas Gerais lideram esse triste ranking.


O mais surpreendente é que a maioria dos casos, pelo menos os mais recentes, empresas de grande porte estavam envolvidas. O Brasil é signatário das convenções 29 - Trabalho Internacional do Trabalho (OIT), através das quais se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório. Apesar de existir uma estrutura que faça a prevenção e fiscalização, o efeito punitivo ainda não tem gerado o impacto necessário para a total extinção dessa prática.


Vale ressaltar que as desigualdades social e regional são esteios da escravidão moderna - a fome, a baixa escolaridade e a desigualdade de gênero servem de arcabouço para a perpetuação da prática. A atuação do Estado para reduzir tais desigualdades, com a implementação de políticas públicas de combate a fome e programas de geração de emprego e renda, são fundamentais para reduzir a vulnerabilidade das pessoas vítimas da escravidão. Tais ações sozinhas não serão suficientes se não houver um compromisso, prioritariamente, ético das empresas em combater o trabalho análogo a escravidão em toda sua cadeia. E os consumidores por sua vez usarem seu poder para dar o tom de tolerância zero com empresas que tenha algo similar em toda sua cadeia de valor.


Se pensarmos, por exemplo, na agenda de impacto social das empresas e seus compromissos com os objetivos de desenvolvimento sustentável, costumam no geral, abordar apenas o ODS 8 (Trabalho decente), mas temos que considerar os outros 4 ODS em função da interseccionalidade entre eles, citando-os: ODS 1 - Erradicação da Pobreza, já que a exploração trabalhista muitas vezes ocorre em regiões de extrema pobreza, o ODS 4 - pois a ausência de educação de qualidade faz com que crianças sejam uma das principais vítimas e também pela baixa alfabetização da maioria das vítimas; o ODS 5 - Igualdade de gênero, já que a maioria das vítimas são mulheres e cabe enquadrar a questão da exploração da mulher e o ODS 10 - Redução das Desigualdades, já que as pessoas mais vulneráveis socialmente são as mais afetadas por essa prática.


Empresas que exportam, possuem compromissos públicos com a agenda ESG e com direitos humanos, pelo menos nos sites institucionais. Mesmo várias reportando que os casos foram com empresas terceirizadas, não as exime da responsabilidade dos crimes. E nesse ponto destacamos a importância do compliance no processo de conformidade às leis, normas e boas práticas empresariais, no que tange sua relação com os stakeholders, em pleno alinhamento com os pilares Social e de Governança. Ao implementar as práticas e princípios de um programa estruturado de compliance a empresa não só mitiga riscos, mas também agrega valor ao seu negócio.


Dentre as principais práticas de compliance aplicadas a relação com fornecedores e parceiros, destaco KYS (know your supplier) - conheça seu fornecedor. Essa prática quando devidamente implementada reduz o risco nas relações com os prestadores de serviços, como, por exemplo, a combate à corrupção no processo de concorrência e colusão com trabalho escravo. O alinhamento das empresas em relação ao compliance e a agenda ESG deve ser em toda a cadeia produtiva, com ênfase na preservação dos direitos humanos.


Em um momento que ESG (Environmental, Social and Governance) e a sustentabilidade tornam-se praticamente sinônimos, consumidores e investidores demandam que as empresas atuem de forma ética e socialmente responsável, uma demanda fortalecida também pelo capitalismo de stakeholders. Fornecer condições de trabalho digna, promover o bem estar econômico e social das colaboradores diretos e indiretos, está em consonância com o ODS 8 - Trabalho decente e crescimento econômico - e com o pilar Social que em essência deve orientar as relações com a comunidade e fornecedores. Promover a equidade social, combatendo a escravidão moderna é um papel das organizações privadas e públicas, trazer os direitos humanos para o centro da agenda ESG, é dar um salto nos compromissos das organizações para além dos compromissos, é fazer o correto. É ética acima do lucro, em qualquer lugar, em qualquer cenário econômico. É a ética como fio condutor das tomadas de decisão das empresas.


*Jandaraci Araujo é executiva do mercado financeiro e conselheira de administração independente


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica


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