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PEC 50/23: mais um ataque institucional à Constituição Federal

LAURA MENDES AMANDO DE BARROS* 06 DEZEMBRO 2023 | 6min de leitura

 

O Brasil é realmente um país em que a criatividade das pessoas – para o bem e para o mal – parece não ter limites.

 

E os momentos de crise, tais como as que vimos observando nos últimos anos quanto à confiança e relacionamento das instituições, parecem estimular ainda mais essa capacidade.

 

Corrobora tal cenário o Informe Latinobarômetro 2023, publicado em julho, que aponta uma retração democrática em toda a América Latina[1], explicitada, inclusive, pelos seguintes dados: 53% dos brasileiros não se oporiam à assunção por um governo não democrático, desde que seus problemas fossem resolvidos; 43% manifestaram-se favoravelmente ao controle dos meios de comunicação; 70% acreditam que os partidos políticos não funcionam; e 45% creem no funcionamento de uma democracia sem partidos políticos.

 

Um demonstrativo exponencial – e escandaloso – dessa ‘criatividade’ é a PEC 50, de setembro de 2023, por meio da qual pretendem os parlamentares autores nada menos que o afastamento de cláusula pétrea constitucional, com a absoluta subversão de toda a construção funcional e de divisão de competências consagrada no Texto Maior.

 

Segundo a proposta, seria dado ao Legislativo simplesmente invalidar decisões, definitivas, transitadas em julgado, da Corte Suprema brasileira, em razão de suposta ‘extrapolação dos limites constitucionais’.

 

Trata-se de intenção de tal forma esdrúxula, indefensável, que até intuitiva a sua absoluta incompatibilidade com os valores fundantes do Estado brasileiro.

 

Vale a pena, porém, diante dos valores em jogo e potencialmente nefastas consequências, o desenvolvimento de reflexões de ordem técnica, para que não pairem dúvidas a alimentarem eventuais fake news e distorções maliciosas.

 

A premissa fundamental a ser considerada é a noção de separação de poderes – ou de funções – assimilada desde o século XVIII, quando de seu aprimoramento por Montesquieu, segundo quem “tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.”[2]

 

Parte da premissa de que a concentração do poder conduz invariavelmente ao seu abuso (lembremo-nos da máxima de que ‘o poder absoluto corrompe absolutamente...’, de Lord Acton), de forma que se faz imprescindível o seu fracionamento e atribuição a diferentes instituições, especializadas e vocacionadas ao desenvolvimento (predominante) de um aspecto da ação pública.

 

Tem-se, assim, o Legislativo, incumbido, prioritariamente, da criação de normas gerais e abstratas, para além do controle da Executivo – investido, a seu turno, na posição de desenvolver e incrementar políticas públicas, sempre com vista ao atendimento às demandas e direitos dos cidadãos; e o Judiciário, encarregado, por meio de sua Corte maior, nas específicas palavras utilizadas no Texto constitucional, “a guarda da Constituição”.

 

Ora, elementar que ao ‘guardião da constituição’ caberá a apreciação de questões constitucionais, inclusive no que tange à divisão de competências e limites de atuação institucional, com definitividade e imutabilidade.

 

Assim foi concebido o sistema de freios e contrapesos, expressão fundamental do princípio da separação de poderes (ou funções) consagrado como pilar fundamental do ordenamento pátrio no artigo 60, §4º, III da CF.

 

Tal desiderato é de tal forma sensível para o funcionamento – e própria existência – do Estado brasileiro que não poderá ser sequer deliberada proposta de emenda tendente à sua relativização ou restrição.

 

Daí a inarredável conclusão de que a PEC em comento já surgiu natimorta.

 

Ainda que aprovada, seria uma emenda constitucional inconstitucional.

 

Na lição de José Afonso da Silva[3], “toda modificação constitucional, feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (...) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário.”

 

Causa espécie, porém: 1. A aparente ‘ignorância’ de parte do Legislativo com relação a essa premissa básica e fundamental do ordenamento brasileiro, de cuja implementação e construção é justamente investido; 2. A ousadia em apresentar proposta tal, que, para além de juridicamente absurda, traduz afronta política a um dos poderes constituídos pilar do Estado; 3. A aparente indiferença dos representantes da nação brasileira apoiadores da iniciativa às avaliações e repercussões internacionais sobre a questão, inclusive no que tange à pretensão brasileira de integrar a OCDE.

 

Nesse sentido, vale trazer à baila as conclusões atinentes à quarta fase de monitoramento da Convenção Antissuborno da Organização no país (da qual somos signatários desde 2001), em que restaram evidenciadas, para além da nossa dificuldade em processar, punir e prevenir atos de corrução, tentativas (mais uma vez, institucionais) de limitação e imobilização de órgãos de controle e sua politização – para além de restrições à liberdade de imprensa e expressão.

 

Tais conclusões foram informadas, inclusive, pelo relatório Brazil: Setbacks in the Legal and Institutional Anti-Corruption Frameworks[4], elaborado pela Transparência Brasil, que indicava problemas atinentes ao processo legislativo nacional, tais como a falta de transparência e possibilidade de controle, de que passou a grande exemplo o orçamento secreto.

 

Vê-se, portanto, que ações do Legislativo atentatórias à estabilidade democrática e instituições brasileiras não são, desafortunadamente, novidade.

 

Não podem ser tidas, porém, como algo corriqueiro: neste momento de inseguranças e desamparo social, a disputa e enfraquecimento institucional representam talvez o pior caminho a ser seguido.

 

Imprescindível, portanto, o pleno funcionamento do sistema constitucional de controle e garantia da juridicidade da ação pública, com a mobilização colaborativa e coerente de seus diversos atores.

 

Cabe ao Judiciário desempenhar seu papel constitucional de guardião da constituição, sempre – em conjugação com a mobilização ativa da sociedade, Ministério Público e Legislativo, por meio dos seus integrantes conhecedores e respeitadores da ordem constitucional.

 

Somente assim a nossa democracia estará, ainda que provisoriamente, assegurada.

 

[1] file:///C:/Users/escob/Downloads/F00016664-Latinobarometro_Informe_2023.pdf.

[2] O espírito das Leis, p. 172.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 65.

 

*Laura Mendes Amando de Barros é doutora e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura; em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e em Autoridades Locais e o Estado pela École Nationale d’Administrarions de Paris. Conselheira Superiora do Instituto Não Aceito Corrupção e da Fiquem Sabendo. Procuradora e ex-Controladora Geral do Município de São Paulo. Professora do Insper

 

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção. Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

 

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