Por Wallace Paiva Martins Junior*
15/03/2023 | 05h00
Está na ordem do dia o tema referente ao recebimento de presentes, mimos etc. por agentes públicos. Descolando-me da contextura fática que despertou o interesse geral sobre o assunto, me restrinjo nesta oportunidade ao tecer alguns comentários sobre o ambiente normativo brasileiro.
Leis não faltam disciplinando a matéria, que tem raiz no princípio de moralidade administrativa constante do art. 37 da Constituição Brasileira, norma de envergadura na construção da ética pública.
Um importante diploma legal que veio a lume em 16 de maio de 2013 é a Lei n. 12.813, que dispõe, entre outros tópicos, sobre conflito de interesses envolvendo ocupantes de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal. Pedagógica e fortemente axiológica, ela conceitua conflito de interesses como a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública, e declara que uma das maneiras de se caracterizar é receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento (art. 5º, VI).
O regulamento dessa disposição está contido no Decreto n. 10.889, de 09 de dezembro de 2021, que veda a todo agente público do Poder Executivo federal receber presente (bem, serviço ou vantagem de qualquer espécie) de quem tenha interesse em decisão sua ou de colegiado do qual participe (art. 17). A norma ressalva o brinde, assim considerado o item de baixo valor econômico e distribuído de forma generalizada, como cortesia, propaganda ou divulgação habitual. Conforme a Controladoria-Geral da União anuncia "como baixo valor econômico, entende-se aquele menor que um por cento do teto remuneratório previsto no inciso XI do caput do art. 37 da Constituição (conforme o § 4º do art. 5º do Decreto 10.889/2021). Em 2 de fevereiro de 2022, o teto remuneratório era de R$ 39.293,32. Logo, um item poderia ser considerado brinde somente se tivesse um valor estimado abaixo de R$ 392,93." (https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/prevencao-da-corrupcao/transparencia-de-agendas/secoes/brindes-presentes-e-hospitalidades)
Esse decreto prevê ainda que, na hipótese de inviabilidade da recusa ou da devolução imediata do presente recebido, o agente público deverá entregá-lo, em sete dias, ao setor de patrimônio de seu órgão ou de sua entidade, o qual adotará as providências cabíveis quanto à sua destinação (art. 18).
Segundo a Lei de Conflito de Interesses, seu descumprimento implica improbidade administrativa, sem prejuízo de demissão e demais sanções cabíveis (art. 12), até porque de acordo com a Lei n. 8.112/90 (Estatuto do Funcionalismo Público Federal), a conduta é proibida (art. 117, XII).
Com igual tônica, a Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992, conhecida como Lei da Improbidade Administrativa, enuncia caracterizar enriquecimento ilícito de agente público receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público (art. 9º, I), sujeitando-o às sanções de seu art. 12, I, inclusive a perda do bem em favor da entidade lesada da Administração Pública.
Por fim, há o Código de Conduta da Alta Administração Federal, aprovado em 21 de agosto de 2000, que também veda a autoridade pública a aceitação de presentes, salvo de autoridades estrangeiras nos casos protocolares em que houver reciprocidade, e também os brindes que não tenham valor comercial ou distribuídos por entidades de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos especiais ou datas comemorativas, desde que não ultrapassem o valor de R$ 100,00 (cem reais).
É certo que o ordenamento jurídico nacional poderia ter ido além. Como historiei em meu livro intitulado "Probidade administrativa", na fase de produção da Lei de Improbidade Administrativa, interessante sugestão foi esboçada pelo Senador Pedro Simon, que apresentou substitutivo propondo a incorporação automática de presentes ou donativos de valor econômico recebidos pelo agente público ao patrimônio da entidade a que pertencesse, sob pena de improbidade administrativa (art. 12, parágrafo único). A proposta aprovada no Senado, foi rejeitada na Câmara dos Deputados. A medida significava um certo avanço, desestimulando a tão comum percepção de mimos e agrados de valor considerável para que os agentes públicos façam algo legal ou ilegal ou deixem de fazer aquilo que a lei lhes obriga.
Como é sabido, a Lei de Improbidade Administrativa foi recentemente modificada pela Lei n. 14.230, editada em 25 de outubro de 2021. Essa reforma foi uma janela de oportunidades para maiores avanços na trilha da concretização da ética pública, recuperando-se aquilo que o Senado havia aprovado na década de 90 do século passado, aprimorando esse código da moralidade administrativa.
*Wallace Paiva Martins Junior, procurador de Justiça (MPSP), doutor em Direito do Estado (USP) e professor de Direito Administrativo (Unisantos)
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica
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