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Sanções unilaterais contra a corrupção: Magnitsky e além, mas para onde?

Por Guilherme France*

14/06/2023 | 05h00


O ex-presidente da Câmara dos Deputados do Haiti, Gary Bodeau, foi punido pelo seu envolvimento em esquemas de corrupção. Bodeau teria recebido, de executivos haitianos, mais de US$ 6 milhões, que foram parcialmente distribuídos para outros deputados, com objetivo de garantir uma votação favorável a um futuro ministro no país. Tal punição poderia ser uma demonstração da eficácia do sistema de justiça do Haiti no combate à corrupção e à impunidade, se não tivesse sido determinada e aplicada por um outro governo - o dos Estados Unidos - com base em um regime de sanções unilaterais.


Trata-se de sanções unilaterais porque, diferentemente das sanções impostas pela Organização das Nações Unidas, estas são resultado da decisão de um único país, com base em procedimentos internos. Aplicam-se a indivíduos específicos, normalmente agentes políticos, ou a empresas e organizações associadas a estes indivíduos, tendo como objetivo penalizar exclusivamente aqueles responsáveis por violações a Direitos Humanos ou envolvimento em atos de grande corrupção.


Celebradas por algumas organizações que atuam contra a corrupção, esse tipo de sanção faz surgir uma série de controvérsias. Cabe a um país estrangeiro aplicar sanções a indivíduos por atos sobre os quais não tem jurisdição? Trata-se de medida jurídica ou política? O Direito Internacional permite sanções unilaterais? Os procedimentos que geram as sanções respeitam os princípios da ampla defesa e do devido processo legal?


Qual a outra opção para combater a impunidade em países onde a justiça é lenta, ineficiente e/ou complacente com casos de grande corrupção, perguntariam os defensores destas sanções. Argumentam ainda que estas sanções produzem pouco ou nenhum impacto negativo sobre as populações que foram, na realidade, vítimas dos atos de corrupção que se pretende punir. Trata-se, portanto, de uma alternativa menos danosa do que sanções econômicas contra todo o país.


Foi os Estados Unidos que liderou o desenvolvimento e a aplicação de sanções unilaterais contra a corrupção na última década. Em 2012, após a prisão, tortura e morte de Sergey Magnitsky, um denunciante que documentou a corrupção generalizada dentro do governo russo, os Estados Unidos promulgou o Sergey Magnitsky Rule of Law Accountability Act. Essa lei instituiu um regime de sanções direcionadas contra autoridades russas. Indivíduos envolvidos nas graves violações de direitos humanos contra Magnitsky foram sujeitos ao bloqueio de seus ativos encontrados sob jurisdição dos EUA, proibidos de participar de transações financeiras nos EUA e de entrar naquele país.


Em 2016, foi promulgado o Global Magnitsky Human Rights Accountability Act (GMA), que globalizou este regime de sanções, direcionadas anteriormente à Rússia. Segundo esta lei, o presidente dos EUA pode impor sanções a indivíduos estrangeiros se forem considerados responsáveis por abusos de direitos humanos ou por "atos de corrupção significativa, incluindo a expropriação de bens públicos ou privados para ganho pessoal, corrupção relacionada a contratos governamentais ou à extração de recursos naturais, suborno ou facilitação ou transferência dos produtos da corrupção para jurisdições estrangeiras" (Seção 3, [a], [3]).


Dois tipos de sanções estão disponíveis no GMA: (i) proibição de entrada nos Estados Unidos, que inclui revogação de vistos, e (ii) bloqueio de bens sob jurisdição norte-americana, incluindo proibições de transações, pagamentos e exportações. Essas sanções são consideradas de natureza administrativa, uma vez que a decisão de impô-las (e revogá-las) é tomada após procedimentos internos do poder executivo do governo dos Estados Unidos.


Outros países seguiram os Estados Unidos na criação de regimes de sanções contra a corrupção. No total, um estudo recente apontou que, em novembro de 2022, pelo menos 12 países ou jurisdições haviam adotado regimes de sanções no estilo Magnitsky. Eram eles: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, União Europeia, Austrália, Noruega, Estônia, Letônia, Lituânia, Kosovo, Gibraltar e Ilhas de Jersey. Destes, apenas os três primeiros usaram sanções para responder à corrupção. Os EUA foi o país que fez o maior número de designações com base em corrupção (299), seguidos pelo Canadá (31) e Reino Unido (27). Os tipos mais comuns de corrupção citados nessas designações são apropriação indevida de fundos estatais, lavagem de dinheiro, fraude e suborno.


No Brasil, Vladimir Aras aponta que medidas semelhantes, como a proibição de entrada no país, poderiam ser aplicadas apenas em casos mais restritos, como o de indivíduos que já foram condenados ou estejam respondendo a processo por crime doloso passível de extradição, conforme previsto pela Lei de Migração. Esta perspectiva bastante mais restritiva está alinhada com a tradição diplomática brasileira de condenar a intrusão estrangeira em outros países e de preferir fóruns multilaterais como espaços para a discussão e eventual aplicação de sanções.


Uma questão que talvez se imponha no futuro mais próximo é como o governo brasileiro reagiria à aplicação destas sanções a indivíduos ou organizações brasileiras. Já foi noticiado, no final do ano passado, que autoridades norte-americanas estavam considerando aplica-las a indivíduos responsáveis pelo desmatamento da Amazônia que é, como se sabe, resultado da ação de organizações criminosas que praticam atos de corrupção e lavagem de dinheiro. As novas alternativas para (tentar) enfrentar a grande corrupção impõem desafios e controvérsias que o Brasil e o mundo não parecem ainda prontos para enfrentar.


*Guilherme France é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Histórica, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas. Pesquisador e consultor de organizações internacionais e ONGs em temas relacionados à transparência, anticorrupção e integridade


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica


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