
Mostram as atuais publicações do Índice de Percepção da Corrupção, produzido pela Transparência Internacional, e do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (veja relatório abaixo), carreado pela America Society/Counsil of the Americas, que o Brasil é percebido pela comunidade internacional como um país altamente corrupto e que tem sido cada vez mais baixa a sua capacidade de detectar, punir e prevenir a corrupção.
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Diante desse preocupante quadro, poderia um intérprete otimista cogitar que na pior das situações, ao menos temos consciência de uma das principais deficiências de nosso país. Contudo, uma análise mais cuidadosa da questão revela a nossa incompreensão sobre as variáveis manifestações da corrupção.
O nosso ordenamento jurídico oferece ao combate da corrupção os crimes previstos nos arts. 317 (Corrupção passiva), 333 (Corrupção ativa) e 337-B (Corrupção ativa em transação comercial internacional) todos do Código Penal. Por meio desses crimes são punidos agentes públicos que solicitam ou recebem vantagens indevidas em razão de sua função pública, bem como particulares que oferecem ou prometem vantagens indevidas a esses agentes, visando que esses pratiquem, retardem ou deixem de praticar ato de ofício.
Os referidos crimes acabam levando muitos a entender que a corrupção é um vício intrinsecamente entrelaçado à atividade pública, na medida em que pressupõem a existência de uma relação entre um particular e um agente público.
Ocorre que desde o início do século XX, e de modo mais intenso, desde a passagem do século XX para o XXI, em diversos países, esse conceito restrito de corrupção tem sido paulatinamente superado por outras perspectivas mais amplas. Por meio de uma perspectiva holística, passam a interpretar a corrupção como “abuso de poder confiado para fins e ganhos privados”.
Essas perspectivas têm como denominador comum duas premissas: (i) a de que na contemporaneidade a iniciativa privada se torna cada vez mais participante e influente na conjuntura socioeconômica, e (ii) a de que por meio de comportamentos análogos àqueles descritos pelos crimes clássicos de corrupção, determinadas relações entre particulares conseguem promover relevantes danos à sociedade, e portanto também devem ser coibidas por meio da tipificação de um crime de corrupção que ocorre no âmbito privado.
Com essa compreensão ampliada de corrupção, diferentemente do Brasil, grande parte dos países vem criminalizando a corrupção privada. De acordo com uma pesquisa realizada pelo portal Global Compliance News, em 2017, de um conjunto amostral de 74 (setenta e quatro) países distribuídos ao longo do globo, 54 (cinquenta e quatro) já dispunham de tratamento penal à corrupção no setor privado, o que indica que perspectivas holísticas de corrupção têm se demonstrado prevalentes no Direito Comparado.
A tendência à criminalização da corrupção no setor privado é percebida não só nos movimentos legislativos de países estrangeiros, mas de forma mais estratégica, em diversas convenções internacionais. Nesse sentido, são vários os exemplos de iniciativas supranacionais que propõem que seus Estados-membros promovam a tipificação do crime de corrupção privada: (i) na Europa – a Ação Comum 98/742/JAI, da União Europeia; a Convenção Penal sobre a Corrupção de 1999, do Conselho da Europa; e a Decisão Marco 2003/568/JAI, do Conselho da União Europeia; (ii) na África – a Convenção da União Africana sobre a Corrupção, de 2003 (veja documento abaixo); e (iii) no mundo – a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) de Combate à Corrupção (veja documento abaixo), de 2003, convenção essa da qual inclusive o Brasil é signatário.
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Se a posição político-criminal favorável à criminalização é consenso no plano exterior, os contornos e limites do que se apresenta penalmente relevante persistem sendo tema de infindáveis discussões dos legisladores estrangeiros e da literatura especializada. A tensão entre a facticidade social, as regras de Direito posto e as pretensões normativas de cada país dão origem a diferentes técnicas e modelos de criminalização.
Os principais modelos desenvolvidos até então são: (i) o patrimonialista, (ii) o concorrencial, (iii) o lealístico-fiduciário, e (iv) o de deveres:
O modelo patrimonialista defende a elaboração de um tipo penal de corrupção privada dirigido à proteção do patrimônio de representados em uma relação de representação (Áustria – 1987) ou de sociedades empresárias (Itália – 2002). Esse modelo nunca teve grande influência no cenário internacional, e a estrutura dos crimes nos países que o implantaram sempre foi fortemente criticada pela doutrina, que aponta o fato de o modelo confundir corrupção privada ora com apropriação indébita, ora com infidelidade patrimonial. Em razão dessa e de outras críticas, esse modelo foi abandonado pelos países que antes o utilizavam e atualmente encontra-se em desuso.
O modelo concorrencial concebe o crime de corrupção privada buscando proteger a livre concorrência, ora de um ponto de vista macroeconômico (Alemanha – 1909), ora de um ponto de vista microeconômico, centrado nos interesses daqueles que participam da ordem concorrencial (Espanha – 2010). Esse modelo chegou a ter forte apelo internacional, todavia a crítica doutrinária atual indica que o modelo traz consigo uma visão distorcida de corrupção como um ilícito concorrencial, interpretando como conduta de corrupção o que de fato seria o efeito de parte das práticas de corrupção. Além disso, o modelo traz grandes problemas dogmáticos que são objeto de crítica da doutrina, como as questões relativas à punibilidade do empresário dono do negócio, e o papel de seu consentimento com as práticas de corrupção para a punibilidade de empregados.
O modelo lealístico-fiduciário busca instituir o crime de corrupção privada visando proteger deveres de lealdade e fidúcia entre empregados e empregadores (França – 1994) ou entre contratados e contratantes (Inglaterra – 1906). Esse modelo, que também já foi replicado em vários outros países, é criticado pela doutrina por relegar a contratos e documentos privados o papel de complemento da norma penal, o que viola o princípio da legalidade e abre perigosa margem à privatização do Direito Penal.
O modelo de violação de deveres, atualmente utilizado pela Inglaterra (desde 2010), abre mão de uma perspectiva relacional fixa de corrupção, para identificá-la como uma violação de deveres objetivos de boa-fé, tanto entre contratantes e contratados, quanto com terceiros que possuam expectativas sobre essas relações. Esse modelo corrige alguns problemas dogmáticos apresentados pelo modelo lealístico-fiduciário, e tem sido cada vez mais adotados por diferentes sistemas normativos, sobretudo como reflexo de um movimento tardio de tentativa de harmonização de Estados-membros europeus às diretivas da Decisão Marco 2003/568/JAI, do Conselho da União Europeia. A despeito das vantagens do modelo, a doutrina reconhece que a perspectiva de deveres torna muito impreciso o conteúdo de injusto da corrupção privada, utilizando-se de critérios contestáveis, como a estandardização de um homo medius para caracterização da conduta criminosa.
Atualmente há uma tendência de hibridização dos modelos, tornando o crime de corrupção privada pluriofensivo. Essa tendência é observada nos atuais movimentos legislativos de países como Itália (2017) e Alemanha (2015), que acabaram se utilizando de uma perspectiva mista, em parte baseada em um modelo de violação de deveres, e em parte baseada em um modelo concorrencial para a instituição do crime de corrupção privada. A essência do crime, todavia, persiste sendo muito ampla e imprecisa, sendo que com a superposição dos modelos, ocorre também uma superposição de seus problemas.
No Brasil, para enfrentar uma série de casos conhecidos de corrupção privada nos setores desportivo, de saúde e de entretenimento, foram apresentados mais de uma dezena de projetos de lei propondo a instituição do crime de corrupção privada. No entanto, não há maiores discussões acerca do tema e os projetos tramitam lentamente, sem qualquer diálogo com a comunidade jurídica, replicando velhos equívocos de legisladores estrangeiros.
Um exemplo do dito acima é a proposta de criação do delito de “Corrupção entre particulares”, trazida pelo Projeto de Lei do Senado que pretende instituir um novo Código Penal, o PLS n. 236/12. A análise da redação do dispositivo proposto revela grande afinidade com o modelo patrimonialista de criminalização. Ocorre que esse modelo, conforme já mencionado acima, constitui uma das perspectivas mais criticadas pela doutrina. Até mesmo nos países em que foi instituído, como a Itália e a Áustria, esse modelo foi substituído ou suplementado por modelos mais atuais como modelos baseado na ofensa à deveres.
No momento, nosso ordenamento jurídico preserva uma visão restrita de corrupção que é incapaz de enfrentar a prática da corrupção privada em setores importantes de nossa economia. A perspectiva de mudança, ainda longe no horizonte, não sinaliza para o aprofundamento das reflexões que permitam superar os problemas que a experiência estrangeira da criminalização da corrupção privada já evidenciou. A discussão sobre a melhor forma de criminalizar a corrupção privada é necessária e, com serenidade, poderemos instrumentalizar a intervenção punitiva de modo a contribuir para a preservação da integridade dos negócios.
*Emanuel Barreto, advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG. Especialista em Compliance pelo CEDIN.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção.
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