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Controle conjugal de contas: a nova chicana nacional

Por Laura Mendes Amando de Barros*

08/05/2023 | 05h00


A recente - e escandalosa - nomeação de esposas, irmãos e outros parentes para o cargo de Conselheiros dos Tribunais de Contas observada no país não constitui, infelizmente, exceção à regra há tempos praticada, e incompatível com os princípios da moralidade, impessoalidade, isonomia e republicano.


Tais Cortes, integrantes do Legislativo e incumbidas da fiscalização e análise das contas do Executivo, são atores importantes do sistema de controle instituído pela Carta de 1988, ao lado do Ministério Público, Judiciário, Casas Legislativas e da sociedade civil.


Tem a incumbência de zelar pela lisura da ação pública, pela promoção do interesse coletivo e, em última análise, pela implementação de uma accountability eficiente, eficaz e efetiva.


Tais preceitos, absolutamente basilares, parecem fugir à percepção de parte dos políticos brasileiros, incapazes de compreender a lógica estruturante de que interesses públicos e privados, quanto potencialmente contrapostos, não devem - e não podem, sob pena de irreversível antijuridicidade - se alinhar.

A distinção entre público e privado passa ao largo da visão desses políticos, muitos dos quais gozam da prerrogativa de indicar aqueles que serão diretamente responsáveis pela análise, julgamento e aprovação - ou não -, de seus atos.


Mesmo que se advogue a natureza por vezes sutil dos conflitos de interesses, a instrumentalização do Estado para a promoção de pretensões próprias, com a ridicularização do sistema constitucional de controle, não pode perdurar.


O discurso adotado por parte desses indicados, ungidos pelo 'chefe' e incumbidos de blindá-los (ad etermum, considerada a natureza vitalícia dos cargos) beira a galhofa - como o das esposas, sem qualquer afinidade com o controle, nas respectivas solenidades de posse: como se tratasse de conquista pelo envolvimento das mulheres, há tanto alijadas da arena pública (inclusive).


A apropriação da causa, a sua instrumentalização voltada à implosão do sistema constitucional de freios e contrapesos é, para além de indigesta falácia, uma aberração moral.


Discussões quanto à legitimidade - e razoabilidade, e decência - da forma de escolha dos conselheiros de contas há muito se fazem presentes, tanto na academia quanto nas instâncias políticas e burocráticas.


A até intuitiva percepção de que propicia distorções, irregularidades e, no extremo, prática criminosa, é corroborada pelos fatos: estudo da Transparência Brasil[1] de 2016 apontou que 1 em cada 4 conselheiros das 34 cortes de contas brasileiras estava sendo ou havia sido processado pela Justiça ou pelos próprios Tribunais de Contas. As infrações variam de improbidade, peculato, corrupção passiva até formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.


Além disso, 80% dos conselheiros havia ocupado cargos eletivos ou de destaque na Alta Administração.


Igualmente ilustrativas as nomeações de esposas: em fevereiro de 2022, pelo então governador do Amapá, Waldez Góes (atual Ministro de Desenvolvimento Regional); do ex-governador da Bahia, atual ministro da Casa Civil, em março último (a nova conselheira tem formação de enfermeira e nenhuma experiência em controle); do ex-governador e atual Ministro de Desenvolvimento Social, Wellington Dias, para a Corte do Piauí; de Renan Filho, ex-governador de Alagoas e atual ministro dos Transportes, resultado de suas articulações; de Helder Barbalho, governador do Pará, em março corrente.


Tal contexto desborda em caótico cenário, com escândalos a evidenciar seus nefastos efeitos: em 2017, 6 dos 7 conselheiros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro foram afastados por determinação da Justiça, em razão da prática de atos criminosos; em 2022, foi a vez da Corte do Mato Grosso, que teve 3 de seus integrantes apartados por envolvimento em fraudes em procedimentos licitatórios.


Não faz o menor sentido o sujeito do controle ter o condão de escolher seu controlador - premissa absolutamente pueril, mas ignorada sem a menor cerimônia pelos 'donos da caneta'.


O Supremo, em decisão relatada pelo Ministro Lewandowski[2] já havia se posicionado pela sujeição das nomeações dos conselheiros à Súmula Vinculante 13, vez que a indicação de parente próximo para "fiscalizar as contas do nomeante está a sugerir (...) afronta direta aos mais elementares princípios republicanos".


Configurado o nepotismo - inquestionável, nos casos considerados -, está-se diante de um impasse quanto aos instrumentais de repressão: desde a malfadada alteração da Lei de Improbidade Administrativa, em 2021, as hipóteses de configuração da conduta por ofensa a princípios constitucionais ficaram restritas às taxativamente previstas no artigo 11 - excluído, portanto, e além do abuso de autoridade e o desvio de finalidade.


O inciso XI do referido artigo contempla atos análogos aos objeto dos presentes comentários - mas seu §5º exige dolo com finalidade específica, ou seja, além da nomeação do parente, há que restar cabalmente demonstrada a intenção ilícita, de de alguma forma obter vantagem incompatível com o ordenamento jurídico.


Em outras palavras, a mera nomeação de parente, mesmo que viole, por si, a Constituição (e a Súmula Vinculante 13), não caracterizaria, após a alteração da lei, improbidade.


A fragilização dos mecanismos de controle não pode ser invocada como fundamento para a perpetuação de distorções e ofensas à ordem constitucional.


Caberá ao Judiciário, a partir da provocação dos órgãos de controle ou da própria sociedade civil, assumir sua responsabilidade constitucional e agir com o rigor que a situação exige, inviabilizando as disparatadas pretensões, e impedindo que se trate com total desprezo as noções de reputação ilibada e notório conhecimento.


Somente assim poderemos falar, efetiva e realmente, em controle da ação pública.


[1] Transparência Brasil. Quem são os conselheiros dos Tribunais de Contas? Disponível em https://www.transparencia.org.br/downloads/publicacoes/tbrasiltribunaisdecontas2016.pdf.

[2]STF. Liminar concedida em sede do Rcl 6702 AgR-MC/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski. Há, ainda, outros precedentes dignos de registro: MC na Rcl 12.478/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa


*Laura Mendes Amando de Barros, doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora-geral do Município de São Paulo. Professora do Insper


Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção


Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Os artigos têm publicação periódica

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