Saneamento básico e corrupção: o potencial e os riscos do setor privado
- Instituto Não Aceito Corrupção
- 28 de mar.
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Para garantir incentivo contínuo a investimentos em integridade por empresas, os órgãos de enforcement da legislação anticorrupção precisam ser protegidos contra interferências políticas e sua autonomia operacional precisa ser garantida
Por Guilherme France
28/03/2025 | 08h10
O Brasil experimentou profundas transformações em seu setor de água e saneamento nos últimos anos. O Marco Legal do Saneamento tem promovido um maior envolvimento de empresas privadas na prestação desses serviços. Embora haja potencial para essa transformação melhorar os serviços, ela também leva a novos riscos de corrupção, especialmente considerando o nível imaturo de muitos programas de integridade privados e o crescente desestímulo a investimentos nestes programas.
Estas foram as principais conclusões do relatório ’Panorama da Integridade da Água na América Latina‘, publicado pela Water Integrity Network, principal organização que atua na interseção entre saneamento básico e promoção da integridade e transparência. O relatório inclui um estudo de caso sobre o novo cenário do setor de saneamento básico no Brasil.
Sob o marco legal anterior, as empresas privadas eram autorizadas a fornecer esses serviços, mas sua participação foi pequena, dados os poucos incentivos e a substancial insegurança jurídica. Entre 2008 e 2017, de acordo com o IBGE, sua participação de mercado caiu de 4,5% dos municípios para 3,6%, ou 200 municípios. A nova legislação aumentou consideravelmente a participação destas empresas. Isso tem ocorrido principalmente de duas formas: (i) municípios e estados têm contratado cada vez mais a prestação desses serviços para empresas privadas, e (ii) as concessionárias estatais de água e saneamento têm sido vendidas para empresas privadas. Dados recentes apontam que as empresas privadas fornecem água potável para 15,3% dos municípios do Brasil (850 municípios) e cobrem quase um quarto da população do país (24,2%).
Nesse cenário, ganha relevância tanto a adoção de práticas de integridade por empresas prestadoras destes serviços, quanto a adequação de práticas adequadas pelos órgãos públicos que conduzem esses processos e que, posteriormente, atuarão na regulação destes serviços. Neste artigo, nos focaremos no primeiro aspecto. As práticas relacionadas à integridade no setor privado brasileiro melhoraram significativamente, especialmente para empresas de maior porte, nos últimos 10 anos. De acordo com uma pesquisa realizada pela Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON SINDCON), as prestadoras privadas de serviços de água e saneamento têm programas de integridade relativamente maduros, com os seguintes indicadores:
- 95% possuem Código de Ética ou Código de Conduta e, para 80%, aplica-se a fornecedores e terceiros;
- 89% têm canais de denúncia para partes interessadas externas;
- 88% realizam treinamento relacionado à conformidade e integridade;
- 73% realizam auditorias externas de seus programas de integridade;
- 72% receberam alguma forma de reconhecimento externo por seus programas de compliance (ISO 37001, Selo Pró-Ética, etc.) (ABCON SINDCON, 2023).
Ressalta-se que esta pesquisa é um estudo voluntário, autorrelatado, e não avalia o nível de transparência dentro dessas empresas ou a eficácia desses programas de integridade.
Outro potencial impulsionador de investimentos em programas de integridade é a entrada de fundos de investimento internacionais nas estruturas de propriedade e gestão de empresas de água e saneamento. Várias dessas empresas estão sujeitas a regulamentações estrangeiras e internacionais, que exigem fortes políticas de integridade e transparência.
Todavia, a desaceleração na aplicação (enforcement) da legislação anticorrupção pode levar as empresas a reduzir seus investimentos nesses programas, aumentando os riscos de corrupção. Como aponta pesquisa recente da Transparência Internacional Brasil com compliance officers das maiores empresas brasileiras¸ a grande maioria acredita que ações de fiscalização sobre corrupção permaneceram estáveis (41%) ou diminuíram (49%). Há, ainda, uma percepção da maioria (90%) de que os sistemas de integridade no ambiente empresarial brasileiro são imaturos e de uma parte substancial de que houve menos (33%) ou mesmo nível de investimento em compliance (39%) nas empresas nacionais.
À medida que as empresas privadas assumem um papel maior na provisão desses serviços, há um desafio para manter ou melhorar o nível de transparência fornecido (ou que deveria ter sido fornecido) pelos órgãos públicos que anteriormente prestavam esses serviços.
O Brasil ainda enfrenta desafios significativos para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 relacionados à água e ao saneamento. Em 2022, 87,3% da população usava serviços de água potável gerenciados com segurança, acima da média latino-americana (75,2%). No entanto, uma proporção substancialmente menor da população (49,6%) usa serviços de saneamento gerenciados com segurança. Avaliar e enfrentar os riscos de corrupção no setor será fundamental para assegurar o direito básico dos brasileiros à água limpa e ao saneamento básico de qualidade.
Nesse sentido, mecanismos independentes para avaliar continuamente a implementação da Marco Legal do Saneamento precisam ser fortalecidos, especialmente no que diz respeito ao aumento da participação de empresas privadas no setor de água e saneamento. Além disso, é necessária legislação para resolver deficiências de longa data na estrutura anticorrupção das relações público-privadas do Brasil, como a ausência de regulamentação de lobby e regras fracas de conflito de interesses. Para garantir incentivo contínuo a investimentos em integridade por empresas, os órgãos de enforcement da legislação anticorrupção precisam ser protegidos contra interferências políticas e sua autonomia operacional precisa ser garantida.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica








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